A 3ª Vara de Família e Sucessões do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP julgou procedente a multiparentalidade em ação ajuizada por dois irmãos que buscavam reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem do padrasto, que os criou desde a infância, sem que houvesse a supressão do vínculo com o pai biológico no registro.
De acordo com os autos, os irmãos ajuizaram ação declaratória de reconhecimento da paternidade socioafetiva, cumulada com modificação no registro civil de nascimento em face das herdeiras, aduzindo que uma delas, sua mãe biológica, conviveu em união estável com o falecido entre 1999 e 2020.
Os dois argumentaram que, ao longo da vida, não mantiveram contato com o genitor biológico e, por isso, desenvolveram laços de afetividade com o pai socioafetivo, o qual não realizou a adoção dos autores por circunstâncias alheias à sua vontade.
O juiz do caso constatou que havia afeto por parte do homem com os autores, que eram tratados como filhos. A relação foi comprovada por meio de fotos de família e eventos sociais, além de prova testemunhal, que demonstraram que os autores eram reconhecidos como filhos do homem e assim eram apresentados ao meio social.
Testemunhas confirmaram que o falecido pretendia realizar a adoção dos enteados sendo, até mesmo, orientado por advogado.
Diante disso, o juiz julgou procedente o pedido e reconheceu a paternidade socioafetiva post mortem. Consequentemente, os irmãos conquistaram o direito de utilizar o nome paterno e incorporar os apelidos de família no registro civil.
Relações de convívio
“A sentença reconhece que a evolução do Direito das Famílias levou ao entendimento de que os laços afetivos são tão importantes quanto os consanguíneos, vez que não seria certo o Direito deixar de reconhecer e conferir validade a relações que se formam com base no convívio, no amor, no respeito, na responsabilidade e no cuidado em detrimento de vínculos biológicos, apenas por pensamentos retrógrados e eivados de preconceitos”, analisa Laís Mello Haffers, advogada do caso e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Para ela, o ideal de igualdade aparece como novo conceito de família, baseado na dignidade humana, na afetividade. Nesse caso, a convivência voluntária garante a harmonia, passando a parentalidade de um caráter natural para o cultural.
“Sendo a dignidade humana e seu pleno desenvolvimento inerente a todos os membros da família, urge destacar as relações paterno-filiais fundadas em vínculos afetivos, as quais carecem de reconhecimento legal expresso, o que não obsta a possibilidade de sua declaração por via judicial, haja vista que é no âmbito das relações afetivas que se estrutura a personalidade da pessoa e que ‘filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação’. Logo, não se pode olvidar que, após o advento da Constituição Federal de 1988, o direito à filiação é um direito fundamental, o qual está atrelado à dignidade da pessoa humana”, pontua.
Vale ressaltar que a Constituição Federal aboliu qualquer designação discriminatória relativa à filiação, estabelecendo que, independente da origem dos filhos e filhas, todos deverão ter os mesmos direitos e qualificações. Dessa forma, foi consagrado o princípio da igualdade de filiação.
“O novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento – que pode ser concomitante – da paternidade socioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, o que possibilita os múltiplos arranjos familiares”, observa.
Uma conquista recente
Para Laís, a decisão do TJSP é inovadora na medida em que o debate acerca da possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade pode ser considerado recente, tendo sido julgado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em 2016, em tese firmada em caráter de repercussão geral do Recurso Extraordinário 898060, no qual o IBDFAM figurou como amicus curiae.
“A tese admite expressamente a pluriparentalidade, tendo em vista que sustenta que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não veda o reconhecimento de relação parental sincrônica, fundada na origem consanguínea, com efeitos jurídicos próprios, ao passo que a decisão consolida em igual grau de hierarquia os tipos de paternidade, não havendo prevalência entre as referidas modalidades de vínculo parental, possibilitando a cumulação de uma paternidade socioafetiva conjuntamente com uma biológica, preservando-se em determinadas situações fáticas”, afirma.
Diante disso, ela considera que o caso em questão pode servir de incentivo para que as normas constitucionais relativas ao Direito das Famílias sejam entendidas de forma ampliada, “não restritiva ao preenchimento de lacunas, o que, consequentemente, viabiliza que casos análogos tenham o mesmo resultado, qual seja: a regulamentação da situação de fato”.