O governo está finalizando a sua proposta para o marco legal das startups. O documento deve incluir, entre outros temas, a definição jurídica da atividade, a adoção de um regime tributário simplificado e parâmetros para o estabelecimento de linhas de crédito dedicadas especificamente a empresas voltadas para o desenvolvimento de produtos e serviços inovadores.
Atualmente, startups não possuem definição jurídica específica.
O projeto deve ser enviado ao Legislativo nas próximas semanas, segundo o subsecretário de Inovação do Ministério da Economia, Igor Nazareth. Fontes do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Tecnologia tentaram finalizar os detalhes, mas foi preciso refinar algumas propostas. A expectativa entre os especialistas que acompanham de perto a elaboração do projeto acreditam é que ele chegue ao Congresso na próxima semana.
Para investidores, a categorização, regularização e a desburocratização do setor podem fazer com que o volume de investimentos em startups se multiplique até dez vezes em cinco anos, colaborando com a retomada da economia.
O marco regulatório começou a ser construído no ano passado pelos ministérios da Economia e da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações em resposta ao Projeto de Lei Complementar 146/19, apresentado por um grupo de 20 deputados de diversos partidos.
A tramitação na Comissão Especial que analisa o projeto estava suspensa desde o início da pandemia, à espera de que a Casa Civil liberasse o material elaborado pelos técnicos dos dois ministérios, que agora será apensado ao texto já em análise.
“O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem nos pressionado para apresentarmos logo o projeto no plenário, mas nós estamos esperando que o texto do governo chegue à Comissão para finalizarmos o relatório”, diz o relator do projeto, deputado Vinícius Poit (Novo-SP).
Ele acredita que é possível requerer urgência no encaminhamento da votação em plenário ainda este ano porque o projeto teria apoio de “praticamente todos os partidos”, afirma.
Participante das negociações para o marco legal, o presidente da ABStartups (Associação Brasileira de Startups), Amure Pinho, aponta que, quando aprovado, o documento não se resume a beneficiar apenas as próprias startups, mas também quem gravita ao redor delas, como aceleradoras e fundos de investimentos.
Pinho afirma que o trabalho vem sendo realizado em quatro eixos: ambiente de negócios, facilitação de investimentos, compras públicas e relações de trabalho, nos quais serão definidas algumas diretrizes.
Entre dos destaques, na avaliação da entidade, estão a definição das funções de um investidor anjo e a fixação do parâmetros de atuação dele dentro da empresa investida, a tributação dos ganhos de uma startup, a relação de trabalho estabelecida com os colaboradores e as regras para parcerias.
Pinho acredita que, com esse novo marco legal em vigor, o setor conseguirá ter mais poder, reconhecimento, validação do mercado e autonomia. “Já temos exemplos disso em diversos países da América Latina e Europa, como Itália, Reino Unido e Argentina, além dos Estados Unidos”, diz.
Para mercado, tributação atual inverte sinais
A ausência de uma regulamentação específica para as startups no Brasil gera insegurança jurídica e trava o desenvolvimento do setor no país, avaliam investidores. Um novo marco legal, se bem elaborado, pode abrir espaço para a expansão de novos negócios no Brasil.
“Uma lei é sempre importante para dar ordem ao processo, dizer que startup é uma atividade econômica que existe como negócio e categoria, o que ainda não existe no Brasil”, afirma João Kepler, investidor-anjo e pré-seed por meio da Bossa Nova Investimentos, que conta com mais de 500 startups no portfólio, como Agenda Edu, Hand Talk, Hallo, entre outras.
Uma das principais demandas é a definição do que é uma startup e quando ela deixa de sê-lo, diz Kepler.
“Nas audiências públicas, os representantes do governo diziam que startup só poderia ter no máximo cinco anos, mas nós discordamos, porque se trata de uma jornada que pode ter dez anos, não se pode considerar que só por ter start [começo, em inglês] no nome, ela tem que ser tão jovem”, defende.
A regulamentação tributária é outro tema que mobiliza negociações. “Não se trata aqui de pedir isenção, benefício fiscal, mas adequação do tratamento tributário e a segurança jurídica dos investidores”, diz Kepler.
Essa adequação, segundo Cassio Spina, investidor e presidente do grupo Anjos do Brasil, é fundamental para alavancar o volume de investimentos no mercado nacional. “Temos um tratamento muito pior que outros setores da economia real”, critica.
“Se eu investir em uma startup, sou tributado como se fosse em renda fixa, mas se optar por um fundo imobiliário, LCI [Letra de Crédito Imobiliário] ou LCA [Letra de Crédito Agropecuário], ou em uma debênture incentivada, sou isento”, diz.
Pela legislação em vigor, a tributação para resultados de investimentos em startups, considerados de alto risco, varia de 15% a 22,5%. Por outro lado, são isentos lucros obtidos com investimentos em LCIs, LCAs, CRIs, CRAs (CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários) e CRAs (Certificados de Recebíveis Agrícolas) e debêntures incentivadas, de baixíssimo risco, fundos de investimentos imobiliários, de baixo risco, e empresas de até R$ 500 milhões na Bolsa de Valores.
Para Spina, esse é o maior impedimento à expansão da base de investidores no Brasil e um dos motivos que levam muitos investidores brasileiros a colocar dinheiro em startups de outros países, onde a legislação mais favorável.
“É perfeitamente legal investir em qualquer lugar do mundo, então, se hoje eu investir numa startup do Reino Unido, por exemplo, vou encontrar um ambiente favorável, de isenção, e esse desequilíbrio desestimula o investimento aqui”.
A avaliação é que o ambiente tributário adverso fez com que o setor não aproveitasse adequadamente uma taxa Selic em baixa. Os investidores em busca de opções para rentabilizar seu dinheiro acabaram gerando um fluxo intenso de capitais para a Bolsa de Valores e os fundos imobiliários –o que não ocorreu, na mesma proporção, para o ecossistema das startups.
A ausência de uma regulamentação específica também cria outro problema: inexistência de modelos de contratos. Um dos grandes gargalos, segundo o advogado Afonso Belice, especialista em startups e assessor legislativo, é a questão trabalhista.
“Estudo feito pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação & Tecnologia e a União Europeia mostra que as startups precisam urgentemente de uma modernização das leis trabalhistas, principalmente nos primeiros cinco anos”.
Segundo ele, é comum no setor que a incorporação de um profissional ocorre via um contrato de vesting , pelo qual se estabelece participação acionária na empresa à medida que os resultados vão aparecendo em determinado tempo. “Só que esse tipo de contrato, comum nas grandes nações tecnológicas, não existe no Código Civil brasileiro”, explica.
Assim, não é raro que quando uma empresa quebra ou demite o colaborador ele entre na Justiça do Trabalho reivindicando direitos pela legislação tradicional. “A decisão sobre a validade ou não do contrato firmado fica a cargo de cada juiz”.
Para o investidor-anjo, a falta de legislação também representa risco. Caso seja firmado apenas um contrato de participação, por exemplo, esse mesmo investidor, numa eventual ação na Justiça, pode ser responsabilizado pelo total das perdas da empresa e não pela proporção do capital que ele investiu. “É como se eu comprasse uma ação da Petrobrás por R$ 10 e, ela tendo um prejuízo bilionário, eu perdesse não o tanto que investi, mas toda a perda”, exemplifica Belice.
Para driblar os riscos apresentados pela inexistência de um estatuto formal para o setor, Kepler explica que o investidor que põe seu capital em uma startup brasileira normalmente utiliza um artifício: o contrato mútuo conversível, no lugar do contrato de participação”.
Contrato mútuo conversível é semelhante a um contrato de empréstimo, pelo qual o investidor tem direito a converter em ações ou em quotas da empresa, em prazo que ele estabelece, o valor aportado à startup.
Para o deputado Vinícius Poit (Novo-SP), relator do Projeto de Lei Complementar 146/19, que aguarda a posição do governo para ser analisado e encaminhado à votação, uma solução para o problema é criação de uma Sociedade Anônima Simplificada, já em discussão.
“Quando você muda de uma empresa limitada para uma S.A., tem a possibilidade de realizar acordos de acionistas e outras ações que a limitada não pode fazer, mas o custo de uma S.A. é muito grande para quem está começando –demanda publicação de balanços, assembleias de acionistas–, então estamos trabalhando com o governo no desenvolvimento dessa versão simplificada”.
O setor tem acompanhado com atenção o avanço do projeto.
O diretor de Relações Institucionais do Nubank, Bruno Magrani, afirma que regulamentação é importante “A criação da norma demonstra o desejo de estimular um ambiente regulatório adequado para novos entrantes e ampliar a concorrência, além de trazer uma série de melhorias ao setor de tecnologia, que já emprega milhões de brasileiros”. Entre as expectativas que a empresa tem em relação ao documento final, ele ressalta que “são bem vindas quaisquer iniciativas que procurem reduzir burocracias, facilitar a competição e estimular a inovação”.
Da mesma forma, Bernardo Campos, líder de Jurídico Corporativo da Loft, que opera com compra, reforma, troca, financiamento e venda de imóveis, garante que a empresa é favorável “a quaisquer projetos que regulamentem o segmento das startups e tragam maior segurança jurídica para empreendedores e seus investidores”. Ele ressalta como relevante o projeto de lei 146/2019, pois ele pode “agilizar e facilitar o início das operações de uma startup, com as propostas de mudança nos campos administrativo, fiscal e trabalhista”.
Campos aponta ainda a importância de se abrir “possibilidade de participação dos estados em start-ups, pela disponibilização de capital por meio de seus bancos, financiadoras e agências de fomento, que agrega relevância ao segmento e proporciona mais uma fonte expressiva de recursos ao empreendedor”.